Civismo
Certo dia houve uma voz interior que me disse: civismo não é servilismo, não te vão cair os parentes na lama, não vais perder a face por ser delicado, de algum modo, de alguma forma, prestável de maneira altruísta ou desinteressada.
Quando não há civismo, quando não há espírito de cidadania, toda a gente acaba por ser mais prejudicada que beneficiada.
Mas quem assim fala ou é estrangeiro ou um português desviante do acordo tácito já há muito estabelecido e enraizado entre nós.
O embaraço de ser cívico

Um gesto de simpatia, de cidadania, de altruísmo, ou gentileza pode-se tornar muito embaraçante, muito humilhante para o próprio e causar embaraço, desconforto e estranheza nos outros portugueses. Uma pessoa até se sente mal.
Além de que fragiliza a nossa identidade nacional muito própria.
E se, por outro lado, chamarmos a atenção a algum compatriota porque ele deitou lixo para a rua, não só nos deita um olhar de desafio como ainda ouvimos das boas.
O embaraço, o desconforto de cumprir direitinho as regras de trânsito.
Num jantar bem regado com um bom vinho do Douro, que ajuda a abrir a alma, alguém me confidenciou que o seu medo de se pôr a circular, em viatura automóvel, a não mais de 50 Km/h, impostos nas localidades pelos limites de velocidade, era o de cair no ridículo perante os que vinham atrás, uma pressão social psicológica como uma espada de Dâmocles, de automobilistas desconhecidos mas certamente cheios de escárnio e desprezo, talvez com gestos da mão livre apropriados e conhecidos. Como já tinha sido multado, por duas vezes, para ele de forma muito injusta claro, não quer correr o risco de nova multa. Só que é muito embaraçante, muito confrangedor.
O orgulho dos potenciais kamikaze
Pelo contrário com que orgulho se descreve uma viagem - relâmpago, com velocidades a rondar os 180Km e mais, quando as estradas o permitem, ou recorrendo a perícias de rali em estradas de montanha. Mas com a preocupação prévia de saber que embora as probabilidades de matar e morrer na estrada estejam, com este tipo de condução, um bocadinho aumentadas ainda assim ficam francamente longe dos 100%.
Códigos da cultura vigente, em que nos sentimos constrangidos e embaraçados quando optamos pelo respeito integral das normas de segurança nas estradas, pois o que vão as outras entidades carro-homem pensar de nós?
Uma forma de opinião pública, sem rosto, da população carro-homem.
E num panorama geral emergente de contenção de despesas supérfulas e mesmo nas de primeira necessidade, que maravilha essa petite folie de subir o consumo de gasolina 30% a 60% ou mais mas desfrutando da adrenalina, das altas velocidades.
Entidades carro-homem
A partir do momento em que nos sentamos ao volante de um carro passamos a ser uma entidade homem-carro ou carro-homem que na estrada se cruza com outras entidades carro-homem, que se relacionam, a maior parte das vezes sem vermos o rosto da componente humana (como nos filmes da Pixar) nem muito menos a conhecermos, nem antes, nem durante nem depois , com códigos tácitos que envolvem, nos contactos visuais, identificação pela marca, pela cilindrada pelo comportamento, de tartaruga ou de anjinho ou de quem quer medir forças, com sinais exteriores de competição, sobretudo em termos de velocidade, de demonstrar o seu poder, perante os outras entidades carro-homem.
O automobilista veterano

Atitudes de veteranismo automobilístico quer com a invasão descomplexada e descontraída de zebrados, quer com ultrapassagens pela direita e condução de gincana na auto-estrada quer com o gozo de fazer “pisca-pisca” quando não é necessário, por exemplo a seguir uma seta de mudança de sentido obrigatória, e de não o fazer quando o é, rotundas, cruzamentos etc..
Temos ainda o jogo das rotundas que consta de o automobilista veterano contornar as ditas com o pisca sempre ligado para a esquerda, o que é sinal de grande experiência e não fazer qualquer sinal com o pisca da direita quando vai sair para ver se os conductores que estão à espera para entrar acertam em qual vai ser a saída escolhida.
E, claro, o braço displicentemente de fora e os sempre vistosos faróis de nevoeiro mesmo à luz de um sol radioso.
O peão à altura do automobilista veterano.
A aparente falta de disciplina dos peões, no recurso às passadeiras, obrigando de forma gratuita e egoísta a um maior consumo de combustível e a um maior desgaste mecânico, pode ser visto tb. como um jogo de adivinhas e surpresas do tipo: será que aquele transeunte que vem pelo passeio junto à passadeira, irá inflectir o rumo bruscamente, sem olhar, e entra no zebrado obrigando a travagens bruscas? Será que não vindo mais carro nenhum atrás o transeunte em vez de esperar que passe o carro solitário o vai obrigar a parar? Será que as sucessivas vagas de transeuntes vão esperar para atravessarem em grupos ou vão preferir a travessia individualista em fila indiana ou a conta-gotas?
As leis foram feitas para se contornarem, ou qualquer coisa parecida, ditado popular ou qualquer coisa do género.
A transgressão é-nos necessária como comunidade para andarmos com o amor-próprio em dia, perante nós mesmos e outros. Como um código de “honra” da Calábria.
Que a justiça te entre em casa: Quando em Portugal se queria desejar mal a alguém lançava-se-lhe aquela maldição.
Uma das mais terríveis maldições que se podiam lançar ao comum dos Portugueses pois era raro o que não teria algum atropelo à lei a pesar-lhe nos recônditos da consciência.
Mas nem seria um Português normal se assim não fosse.
E este espírito, esta cumplicidade da nossa quotidiana e mais ou menos inocente aceitação da subversão ao que está legislado, mantém-se bem vivo.
Com que orgulho se dá notícia, como se conseguiu fugir aos impostos e ainda receber dinheiro do fisco, perante uma assembleia de familiares, amigos, ou conhecidos, fascinada com tal talento e manifestando a sua mais profunda admiração, simpatia, e encorajamento.
Censurar alguém porque defraudou o estado (ou seja a colectividade) ou pôs em risco de vida, com uma condução ousada, não só o próprio como toda a gente com quem se cruzava, seria motivo de muito espanto por quem nos ouvisse. Pelo contrário devemos brindá-lo com palavras de compreensão senão mesmo de incentivo.
E chamar a atenção para um condutor que estacionou, num parque, a ocupar dois lugares, deixa-nos, como portugueses, com a sensação incómoda de não estarmos em sintonia com os códigos aceites e ainda ficamos sujeitos, e com toda a razão diga-se de passagem, a sermos brindados com meia dúzia de palavrões.
Quando nos perguntam quer uma facturinha e uma pessoa um pouco a medo disser que sim, é que é para o Estado sabe, isso pode gerar constrangimento de parte a parte; será que vai levar mais dinheiro da próxima vez, será que ficou triste e aborrecido?
Acabamos por ser mais compreensivos, mais tolerantes com as infracções do dia-a-dia do que com quem exige de si próprio e nos exige um cumprimento das normas de boa cidadania.
A outra faceta do dia-a-dia em Portugal
Como para compensar esta má consciência de nós como povo desleixado há quem admiravelmente se supere, talvez com alguma falta de bom senso, como é o caso das directivas da ASAE com agentes, armados de metralhadoras, à procura da infracção gravíssima das colheres de pau, ou do porteiro do Hospital de Faro que proibiu a entrada ao primeiro- ministro Cavaco Silva por este não se ter identificado, ou da proibição de fotografar os azulejos da estação de S. Bento o que deixa os turistas perplexos e desconsolados, ou de quem manda dar ordem de prisão a um Vale Azevedo um minuto depois de ter sido liberto, já de malas na mão, fato e gravata, a encaminhar-se para o carro que o levaria para casa onde era aguardado em ambiente festivo e isto não lembraria nem ao Kafka. E, claro, os nossos campeões mundiais da burocracia, rotinados e imbatíveis em serem mais papistas que o Papa.
Defraudando o bem comum
Um comportamento, como cidadãos, pautado pelo egocentrismo, egoísmo, individualismo, pela casmurrice, num dia a dia pouco hospitaleiro e acolhedor, feito de extremos, mas com a liberdade de não nos pesar muito na consciência as subtracções ao erário público, os milhões de Euros que nos vão custando os destemperos e a desorganização rodoviários, o relaxamento com que vamos evitando a necessidade colectiva de gestos de civilidade no nosso dia-a-dia.
Bem à portuguesa
Há uns anos, num conhecido café de Lamego, o empregado entornou uma chávena de café em cima do casaco de um meu amigo. Seria de esperar, visto que a culpa foi toda do empregado, que este se prontificasse a pedir muitas desculpas e a minorar os estragos, e caberia ao dono do café, que assistiu a tudo, vir de imediato acudir ao cliente. Ora quanto ao primeiro, olhou desconfiado e sentido como a culpar o ofendido, e sem esboçar o mais pequeno gesto aguardou os acontecimentos à defesa, quanto ao segundo, ficou a observar, também imóvel , de expressão concentrada, pronto a rechaçar qualquer investida verbal do lesado a exigir reparação dos danos. Teve o meu amigo, advogado experiente, de se levantar e ir ao balcão pedir um trapo para ir aos sanitários tentar limpar o casaco. Só lhe faltou pedir desculpa por todo o incómodo. Isto já se passou há uns aninhos mas o espírito actual, no geral, continua a ser o mesmo.
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