Todas as crianças sempre foram, são e serão hiperactivas, relativamente aos grupos etários posteriores, passe a redundância.
Mesmo as que aparentam mais contenção, assim que surjam as condições propícias é ver como toda a forma de energia, própria destes grupos etários, salta cá para fora.

Dentro da hiperactividade infantil, sempre houve crianças cuja actividade se tornava mais perturbadora, chamando-se a essas irrequietas (ou que tinham os bichinhos carpinteiros), adjectivo que desapareceu misteriosamente do léxico usado para caracterizar o comportamento infantil.
E quando essa irrequietude começava a traduzir-se por prejuízos e acidentes próximos do exasperante, utilizava- se outro termo que também parece ter caído em desuso: traquina, criança traquina.
Os adjectivos irrequieto e traquina além de serem em termos absolutos, mais adequados, para descrever um comportamento, não trazem consigo a conotação de distúrbio comportamental, de patologia, como acontece com os adjectivos hipercinético e hiperactivo.
Por seu turno o agora pomposamente chamado défice de atenção foi sempre comum na criança que se dizia estar com a cabeça na Lua, ou ganhava o epiteto de cabeça no ar. Só que o ambiente de disciplina na escola era bem diferente e os professores optavam, e tinham condições para isso, por um controlo apertado chamando continuamente à terra os que andavam a vogar pelo espaço. Desta forma não se notava tanto o problema do dito défice, aliás ainda nem se falava dele e, pelo menos em Portugal, ainda não estava na moda.
À parte o comportamento desajustada e desproporcionadamente agressivo de alguns professores que, de forma merecida, foi condenado e erradicado, no geral era muito mais fácil manter os alunos com atenção, até porque pais e educadores tinham uma imagem, junto às crianças, de outra grandeza, mais de acordo com uma real e indispensável hierarquia biológica e social da experiência e da maturidade, imagem que acabaria por se tornar mais prosaica e acessível.
De qualquer forma, em poucas dezenas de anos a natural cinésia da infância, e os desvios de atenção nas aulas passaram a ser rotuladas como doenças a necessitar, a rogo dos pais e professores, de consultas de Psicologia e Pediatria e até de Psiquiatria, e do recurso a psicotrópicos que merecem receitas especiais.
Como se este período do crescimento, com uma cinésia e uma entropia muito próprias e que se irão perdendo inelutavelmente, em termos biológicos, ao longo da vida, para dar lugar ao processo progressivo de maturação cognitivo-comportamental (mais educação, mais ponderação e contenção, mais organização e mais ordem) se caracterizasse, nos dias de hoje, por desvios de carácter, em casa e na escola, a necessitarem de atenção clínica e apoio medicamentoso.
O que na verdade se tem passado é que para além da eterna irrequietude infantil esta está bastante mais liberta de condicionamentos repressivos e disciplinadores, pelo que extravasa despreocupadamente sem peso nem medida, e passou a ser hipervalorizada.
Em termos meramente formativos, na década de 50, do Século XX, uma criança de 6 anos, apenas com um único livro escolar para toda a matéria, com um lápis, uma borracha e uma caneta, numa pequena caixinha de madeira, e em que a máquina de calcular era o seu cérebro, sem precisar de ser sobredotada (outro adjectivo pomposo muito em voga), já fazia, na 1.ª classe, contas de dividir.

Desde meados do século XX, depois da 2.ª Grande Guerra, iniciou-se na Europa e nos EUA um processo de contestação dos valores morais e familiares dominantes e das formas tradicionais, familiares e escolares, de educar os mais novos.
Para além disso, e também como consequência disso, a apoteose humana das sociedades de consumo, a mudança nos hábitos de vida na família e na sociedade, com a emancipação da mulher, as famílias monoparentais, a subida exponencial do número de divórcios em proporção inversa com o número de casamentos, e, em nome da modernidade, o advento dos multimédia, a desinibição crescente nos comportamentos e atitudes, quer na família quer na sociedade, cada vez com menos rédeas e mais desregrada, o espectro que se vai alargando de opções lúdicas com acesso livre dos mais jovens a todo o tipo de conteúdos quer nos jogos de computador, quer na net ou na televisão, a invasão dos fast-food e junk-food, acompanharam aquele processo de contestação e fizeram parte dele.
Neste contexto, parece-me óbvio que tem havido uma conjugação de factores ambientais, alimentares, educacionais e lúdicos que moldaram os comportamentos infantil e juvenil mais como catalisadores energéticos, destruturantes, e agora em espaços muito mais confinados, do que como agentes formativos e estabilizadores. (1)
Da sala de brincar, da rua, do jardim e do quintal, mesmo do pinhal, dos baloiços e dos escorregas, as crianças passaram a frequentar a alcatifa da sala de estar, espaço compartilhado e disputado com os mais velhos, com prejuízo mútuo das actividades e vivências próprias de cada grupo etário.
A energia da infância continua lá e se não se liberta numa corrida de triciclos ou num jogo às escondidinhas acaba por dar notícia da sua existência de formas bem mais perturbadoras, dentro das quatro paredes.
A criança, nas sociedades em que estamos integrados, deixou, dentro do seio familiar, muito do seu nicho próprio, mais individualizado, com uma outra dimensão muito sua, e passou a ter um papel mais activo no convívio com os adultos como o entretém maior, como compincha em miniatura, como o leitmotiv dominante nos assuntos do dia, dentro e até fora de casa. Em consequência até é descurado de forma mais ou menos inocente um repouso adequado, com as indispensáveis horas de sono, havendo casais que só não levam os seus filhos pequenos para a discoteca porque lhes interditariam a entrada (2).
A partir do momento em que a criança é eleita como o rei ou a rainha da festa, como o centro das atenções, todos os dias, onde quer que esteja, quer na intimidade do lar quer em ambiente de convívio alargado a outros familiares, amigos, colegas e até em encontros de ordem meramente profissional, fará os possíveis por reivindicar esse estatuto, sobretudo quando se vê esquecida, procurando chamar e monopolizar todas as atenções com as armas de que dispõe a nível cinético e afectivo.
Por outro lado praticamente desde que nasce é com frequência sujeita, via TV, a um bombardeamento diário de milhões de imagens a velocidades desmesuradas para um pequeno cérebro, em período critico, de estruturação cerebral, e ainda sem capacidades para processar esta vaga de informação, televisão que compete com as formas mais adequadas de condicionar a maturação cerebral, TV a que mais tarde, ainda na infância claro, se associam os jogos da PlayStation e dos computadores. (3)
Não só não sedimentam conhecimentos (ao contrário dos livros, do teatro e dos filmes vistos em idades apropriadas, dos jogos de tabuleiro onde se socializa e desenvolve a linguagem com o diálogo a que obrigam, e se aprende a interpretar códigos de conduta e de convívio) como originam comportamento agressivo, problemas de atenção, obesidade e falta de horas de sono.
A indústria alimentar, por seu turno, perversamente dirigida ao público infantil, conquistando-o e moldando-lhe os gostos, com uma sobrecarga de até 80% em açúcar e chocolate nos cereais, que ainda oferecem brinquedos, e com a cafeína de alguns refrigerantes será outro dos factores a ter em conta no campo da hiperactividade infantil.
O desenvolvimento do ser humano tem várias fases, grosso modo 1.º ano de vida, 1.ª e 2ª infâncias, pré adolescência e adolescência, adulto jovem, adulto, meia- idade e idoso, fases com características muito particulares e vincadas, características que não são só culturais e sociais, com que habitualmente se explica, por exemplo, o comportamento egocentrista e contestatário dos adolescentes, mas básicamente biológicas. Ao olhar para uma criança ou um adolescente, um adulto tem de os encarar como seres também humanos mas em tempos biológicos diferentes. Os neurónios dos lobos frontais, responsáveis pela socialização, planeamento e inibição só ficam completamente formados aos 21 anos.(4)
Uma criança não é um adulto em miniatura. Forçar as relações como se o fora, acaba em prejuízo para ela própria e para um salutar convívio intergeracional e intrageracional.
Se na segunda infância tem potencialidades para o cálculo mental que se não forem desenvolvidas nessa altura acabarão por se perder, ainda lhe faltam muitos anos para abrandar, por si só, o seu potencial hipercinético relativo, e obrigar-se a concentrar no que diz o professor, e nos livros. A abordagem escolar, para ser realmente eficaz, terá de ser feita atendendo às particularidades da infância, por um lado em termos de aproveitamento das capacidades de plasticidade mental irrepetíveis, por outro para a necessidade de disciplinar o comportamento.
E isto não vai mudar por mais soluções luminosas, pretensamente progressistas e libertárias, e sobretudo politicamente correctas, que se sucedam no Ministério da Educação, com os resultados à vista, ou por muito que se queiram justificar os incómodos causados por se ter passado do 8 para 80 na permissividade, e na passividade com que lidamos com o comportamento infantil, rotulando-o com adjectivos mais apropriados a perturbações patológias da mente.
(1) Englobadas também por estas mudanças libertárias, em nome da modernidade, nos códigos de valores da família e da sociedade, na deusificação do consumo, mas como que vivendo em universos paralelos à burguesia (à classe média, à média alta, e até à pequena burguesia) temos as realidades bem diferentes dos bairros sociais, e dos bairros clandestinos, fonte permanente de marginalidade de crime, de exclusão. Mas aqui também estas mudanças parecem constituir mais um factor de instabilidade social do que de civilidade.
(2) Como pediatra pude observar uma pequenina de 4 anos, com herpes peribucal singularmente exuberante, sinal seguro de diminuição das resistências do corpo e da mente, quebra do estado geral notória, aspecto franzino, com olhos encovados e uma pneumonia declarada.
Quando recomendei ao pai para a pôr cedo na cama, nem era muito cedo (20h), ele ficou muito espantado a olhar para mim e respondeu-me que isso era difícil porque ela está habituada a ficar com os irmãos mais velhos, até tarde (…), a jogar play-station.
(3) Os primeiros 10 anos constituem uma fase irrepetível de produção de sinapses nervosas e vias neuronais, fase em que a plasticidade nas conexões e estrutura neuronal necessitam, mais que em qualquer outra altura da vida, de condições as mais adequadas possíveis para uma plena maturação.
(4) Por assim dizer, antes dos 18-21 anos, o córtex pré-frontal é imaturo, subdesenvolvido, tem diminuição relativa do controle dos impulsos, do juízo, da avaliação.
A percepção, o conceito que temos da dimensão do tempo também varia com a idade e a correspondente cinésia, própria de cada grupo etário ou seja quanto maior for a energia cinética ou mesmo a entropia que geramos, mais dilatado se torna o espaço de tempo de que dispomos, em termos de noção, e expectativa.
E aqui, mais uma vez não se trata de uma questão social, cultural ou educacional mas biológica, ou melhor, cronobiológica.
Lembro-me de uma vez, em que fui com a minha filha adolescente ao Cinema, dentro de um grande centro comercial (como há poucos por essa Europa fora, aliás), com muitas montras, cafés, livrarias, termos chegado 30 minutos mais cedo. Ela vira-se para mim, com preocupação e algum pânico expressos com um o que é que vamos agora fazer neste tempo todo que falta?
Numa entrevista radiofónica a um emigrante português no Japão, provavelmente na casa dos vinte e tais, este para caracterizar as diferenças de idade, com outros colegas, recorreu à seguinte descrição: eles que têm muitos mais anos (que eu), trinta e tais, quarenta anos (…).
Na verdade para um individuo mais velho, de 60 anos por exemplo, o espaço de tempo que medeia entre ele e um adulto jovem de 20 anos é percepcionado como sendo mais curto que o mesmo espaço de tempo percepcionado pelo jovem, que o encara como ainda muito longínquo.
Para uma criança um dia corresponde perceptívelmente a um período de tempo maior do que para um adulto jovem e muito maior do que para um idoso. E se já há essa diferença circadiana, então quando se fala em meses, para essa criança, isso quase equivale a falar em anos para um adulto.
Quanto maior a energia cinética mais o tempo se dilata.
Em suma há diferenças marcantes na perspectiva que temos da realidade, em termos de variações cronobiologicas, sendo a dimensão dos espaços de tempo inversamente proporcional à idade e directamente proporcional à quantidade de energia cinética característica de cada grupo etário.
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