sábado, 11 de agosto de 2012

Fotografar um monte de terra.


Lamego, um apontamento de 2009, mas que aborda um problema que se manterá sempre actual, como se verificou recentemente, com o derrube selvagem, em termos de paisagem e de usufruto das populações, de grandes árvores frondosas e de outras mais pequenas, mas que davam sombra, na Figueira, junto ao rio Balsemão, aparentemente à revelia da Junta de Freguesia.




Quem passa na estrada nacional, pela velha ponte de Reconcos depara-se, a enquadrar o rio Balsemão, com um cenário desolado de terra cinzenta, revolvida, tubagens e uma cerca de cimento e arame. 

Até há poucos anos havia um declive suave, de acesso fácil ao rio, no que era um local, comparativamente ao restante da vizinhança, bucólico e aprazível.

Era frequente ver, na época estival, crianças a chapinhar na água, ou a vogar em barquinhos de borracha, rumo a um pequeno rochedo, no meio do riacho que, na sua imaginação, o olhavam como se fora uma ilhota, sob o olhar deleitado e atento dos pais.
Até os adultos se divertiam a molhar os pés.

  Embora com a presença vizinha de um pequeno armazém, em cimento à vista, sempre vazio, sem porta, e abstraindo-nos dele e da sua fealdade, era um recantozinho, de acesso fácil, para se parar o carro, estender a toalha da merenda, e ter as crianças entretidas, a brincar no riacho. 



Não abundam tantos espaços quanto isso, na região.

  E assim foi, durante décadas (ou mais), sendo, este local, carinhosamente conhecido como a praia de Reconcos. 

De repente começaram as mudanças, alguém que aparece a colocar um aviso de propriedade privada, um letreiro a pô-la à venda com o dito armazém, e que a seguir isola o local com uma cerca de arame, a impedir o acesso, e finalmente, a visão de amontoados de terra, a condicionar um declive íngreme até à água.

 Onde havia descidas suaves e com vegetação, para pessoas e também para o gado à procura de água, há agora uma muralha implantada, de terra cinzenta e árida, como num mini cenário de guerra. 

Onde havia um pequeno aterro para deixar o carro, a terra está revolta, inacessível, mesmo para um Defender.

Um ambiente árido, com amontoados de terra, sem vegetação, a impossibilitarem o usufruto pelos ocasionais veraneantes, que não têm agora muitas outras alternativas, por perto.

Como se fosse esse o objectivo em que os responsáveis se empenhassem de forma tenaz. Pelo menos é o que aparenta.

Mas certamente a causar desconforto e decepção nos turistas, que por aqui se aventuram e, no geral, a quem por aqui passa, à espera de se encantar com uma natureza mais respeitada e conservada, à procura dos recantos de um Portugal mais idílico e convidativo. 

Sendo este local contíguo a duas estradas, sendo uma das estradas nacional e turística, penso que esta intervenção implacável  poderia ficar abrangida numa qualquer legislação sobre a protecção do ambiente, sobre a preservação da paisagem (que tem levado à remoção das sucatas, por exemplo) ou outra(s) que salvaguardem o interesse público e do turismo e lazer.

E como diria um arquitecto célebre, uma casa não é só de quem a tem é também de quem a vê. Podia-se aplicar este pensamento ao meio ambiente natural, mesmo em regiões de evocação menos sonante. Pois, ao fim e ao cabo, a imagem do país, é a soma das partes.

Há também a ter em conta a utilidade para o gado da região, que lá ia saciar a sede, por certo desde há séculos, e que agora tem estes caminhos cortados.

Grosso modo, ou os responsáveis autárquicos estão distraídos, ou há perspectivas diferentes, mediante os interesses e interessados em causa, ou simplesmente até pode ser tudo absurdamente muito legal.

De qualquer forma, independentemente das razões possíveis, foi sacrificado o interesse público em termos de ambiente natural, de pastorícia e de lazer. 

Mesmo pelas melhores razões, pelos mais fortes motivos, deveriam encontrar maneiras de salvaguardar o usufruto visual e lúdico, daquele espaço ou de atenuar tal impacto.

Uma das últimas imagens que eu conservo, é a de dois ciclistas jovens, com os seus sacos de viagem, pateticamente a procurar, com as suas máquinas fotográficas, algum resquício de paisagem, que tenha escapado ao vandalismo. Mais vale passear nos centros comerciais.



quarta-feira, 25 de julho de 2012

Publicidade e Ética




Nas últimas décadas, desde o século passado, a publicidade foi crescendo em progressão geométrica, adaptando-se de boa ou de má-fé, às mudanças na Educação em casa e na escola, à cultura da fast-food ou da junk-food, como são conhecidas nos Estados Unidos, nação de quem se copia menos o rigor, os padrões de exigência, a responsabilidade, o trabalho, o civismo e a cidadania, e muito mais a irreverência nas séries televisivas, o desperdício, a moda desportiva-urbana e a Coca-Cola.

Aliás as próprias agências de propaganda também elas podem moldar ou reforçar novos hábitos de vida e de consumo e inventar necessidades.

Mas um conjunto de factores, os alarmes contínuos, diários, hora a hora, de políticos e comentadores, que desde há mais de 4.000 dias nos dizem de forma cada vez mais estridente, que estamos à beira do precipício económico e financeiro, o repensar na Educação e nos hábitos alimentares, em particular no que concerne à obesidade, e, sobretudo, uma quebra drástica no poder de compra dos portugueses, condicionaram um certo arrepiar de caminho na publicidade.

De qualquer forma a publicidade aqui descrita ilustra bem uma época em que o apelo ao consumo (bebidas, telemóveis, alimentos, jogos de computador, brinquedos) se dirige muito a crianças e adolescentes, associando-o a atitudes subversivas, tão do agrado daqueles grupos etários e até a um significativo esbanjamento, vistos com simpatia.

Muitos destes filmes publicitários, felizmente, tiveram uma passagem fugaz pela televisão, mas é importante recordá-los.

Certo dia, em conversa amena, disse a uma senhora representante de uma conhecida marca de produtos alimentares para crianças, que, no que respeita a cereais com cobertura de chocolate e outras formas de os tornar bem mais doces, eles, os responsáveis da dita empresa, não estavam a ser honestos.
-Pois não, retorquiu de imediato, mas desde que começamos a tirar açúcar aos cereais a concorrência passou a vender mais.

A publicidade, entretanto, tira partido, por um lado, da imaturidade própria da infância, e de uma exagerada passividade e submissão dos pais face aos caprichos dos filhos, por outro pelo facto da tarefa dos progenitores em procurarem introduzir gradualmente na dieta da criança, os legumes, a fruta, as proteínas animais, se revelar muitas vezes complicada, até pela falta de tempo, característica destes tempos.

Num determinado anúncio televisivo vê-se um menino, sentado à mesa da cozinha, a afastar com as mãozinhas os sucessivos pratos que a mãe lhe vai colocando à frente: tem espinhas…tem nervos…tem casca… A solução: pão de forma sem crosta, de uma determinada marca, e a mãe fica com os seus problemas, em alimentar o filho, resolvidos.

Ainda noutro anúncio, que mostra um jantar rotineiro de uma família risonha, de aspecto despreocupado, feliz e contente, a filha mais nova, ainda na 1.ª infância, despeja o prato de bróculos ou qualquer outro legume, dentro do aquário, travessura que se aceita naturalmente, ninguém se surpreende, ninguém a corrige, ninguém repreende e que leva a mãe a levantar-se levemente preocupada. Voz do locutor: não se preocupe, agora tem ao seu dispor uma margarina vegetal…de cujo nome não me recordo, mas penso que era evocativo do reino vegetal.

E, noutro anúncio, para quê mandar a criança para a escola com uma peça de fruta e um pão com fiambre, para o lanche? Dá-se-lhe um chocolate, que não ocupa tanto espaço, e é mais prático pois poupa-se em trabalho e em tempo.








A publicidade dirigida às crianças e adolescentes, no campo da alimentação, tem vindo a incrementar a substituição da gastronomia doméstica e tradicional (e dos princípios que regem a roda dos alimentos) pela chamada “fast food” ou “junk food”, de manipulação uso e consumo, regra geral, muito mais simples e rápido.


Com recurso a um marketing agressivo, muito difundido pelas televisões, com embalagens e acessórios, normalmente brinquedos, apelativos ao imaginário infantil e juvenil, com aditivos em açúcar que podem chegar aos 80% e associando os seus produtos a uma maneira consensual, moderna e actual de estar na vida, este tipo de indústria alimentar alicia filhos e pais.

Como consequência também podemos testemunhar em muitas famílias, na maioria das refeições, a secundarização ou mesmo a total ausência de legumes e fruta frescos. No caso de Portugal, curiosamente, podemos encontrar esta realidade no campo, tanto ou mais vezes, que nas grandes metrópoles. Mesmo quando os pais não têm esse hábito as crianças impõem-no, e é moderno e politicamente correcto não as contrariar.

Chega-se ao cúmulo de em zonas rurais deixarem apodrecer as batatas cultivadas e colhidas com grande esforço e sacrifício e (ingenuamente) “mimarem” as crianças com pacotes modernos de batatas fritas industriais, com cerca de três vezes mais de gorduras polinsaturadas que as batatas fritas feitas em casa, aliás as primeiras de muito pior sabor quantas vezes rançoso.

E depois de se habituarem aos aditivos, e condicionados pela publicidade que os glorifica, mesmo o sabor intenso do milho simples torrado como nos corn flakes, passa a ser, para os jovens, desinteressante e mesmo desenxabido.


O aumento do número de crianças que padecem de excesso de peso, e das que vão começando a aparecer com níveis altos de colesterol, com todos os problemas para a saúde e para o desenvolvimento que daí advém, devem ser vistos neste novo contexto, para além de outros factores como o sedentarismo, junto aos écrans da televisão, da Play-Station e do computador.

É também notório que a publicidade, a promover o consumo de álcool, é cada vez mais descaradamente dirigida aos adolescentes e aos adultos que há pouco tempo deixaram de o ser.

A estratégia reside em associar à irreverência, à alegria e à espontaneidade da juventude o consumo de bebidas alcoólicas.

A idade dos protagonistas intervenientes nos anúncios de bebidas alcoólicas (desde conhecidas marcas de cerveja até bebidas brancas) tem vindo a descer a ponto de encontrarmos jovens de aspecto e contexto escolar universitário que sugerem idades à volta dos 20 anos, em anúncios não só de cerveja mas também de bebidas com maior teor de álcool, isto tanto na TV pública como na tela dos cinemas e em placards gigantes.

Pisca-se o olho a um patamar populacional inexperiente de potenciais consumidores mais fáceis de aliciar.

Ou seja promove-se cada vez mais, na publicidade dos nossos dias, junto à massa estudantil o usufruto consentido das bebidas alcoólicas e explicitamente, em anúncios na tv e no cinemas, das noites e madrugadas sem dormir e bem bebidas, associando (e com êxito) aqueles hábitos, à mudança inevitável e inelutável dos novos tempos, às atitudes simpaticamente transgressoras de uma juventude na moda, descontraída, cool, actual, irreverente e alegre, como deve ser o apanágio dessas idades.   
        
A publicidade com frequência cada vez maior, por vezes de forma quase subliminar, outras de forma bem descarada, não olha a meios nem a escrúpulos para atingir metas e objectivos centrados unicamente no volume de vendas, não só na área da alimentação, mas noutras áreas.

Em plena época escolar encontramos um anúncio na TV em que dois adolescentes se revezam durante toda a madrugada para navegar na Internet, e, pela expressão entusiasmadíssima e divertida dos dois, parecem estar motivados por novidades lúdicas ou lúbricas, ou pelo simples fascínio pela tecnologia em si. Não há nenhum caderno de apontamentos ou livro de estudos por perto.

Isto sabido que é, tanto pela ciência como pelo senso comum, se os pais precisam de dormir, este grupo etário necessita de mais horas de sono nocturno do que os seus encarregados de educação.

No campo dos valores que, no seu relativismo, ainda são indispensáveis para um mínimo de bem-estar social, também piscam o olho à subversão pretensamente domesticada e se não o for logo se vê. É o caso de um anúncio (que entretanto felizmente desapareceu) em que um acordo de cavalheiros, selado com um aperto de mão, é mostrado de forma pejorativa como (exemplo de) uma atitude do passado considerando-se, com este exemplo de códigos de honra, que aqueles tempos, aqueles comportamentos, eram (uma grande seca) um anacronismo.

Um apelo à descontração, à irresponsabilidade, à falta de brio, como se só estivesse atribuído a alguém, no Governo ou em Bruxelas, mais concentrado e responsável, o papel de velar para que as coisas não descambem.

Entretanto e voltando à alimentação, até os cereais com coberturas de chocolates nos são mostrados, noutro anúncio, e com um grande piscar de olhos às adolescentes, associados a atitudes de irreverência, de rebeldia, de afirmação perante os adultos e também perante o outro sexo, anúncio em que duas jovens descobrem, de cada vez que mastigam uns quaisquer cereais estaladiços que, por cada crunch, vão destruindo, espatifando brutalmente a casa do vizinho da frente, entusiasmadíssimas e ultra sorridentes, com gargalhadinhas e gargalhadonas ostensivas e agressivas, com tanto mais entusiasmo quanto mais o dito vizinho fica aterrorizado e em pânico, enquanto, noutros anúncios, os yogurtes, as bebidas de leite e sumos  são-nos revelados per si e por acréscimo, com insuspeitadas potencialidades erótico-sensuais.

Desde o aparentemente mais inocente, como o da margarina como substituto de legumes, para satisfazer caprichos infantis, até ao mais grave, como incentivar o consumo de álcool junto a um grupo etário de jovens que entre outras especificidades e consequências é responsável por 1/3 dos acidentes mortais de viação, a publicidade serve, neste contexto, sem grandes ou nenhuns escrúpulos, de forma muitas vezes perversa, simplesmente a ganância de grandes empresas e multinacionais, onde se tem mais em conta o lucro do que a saúde dos consumidores.

O que ensinam na sala de aulas, em casa ou em programas da National Geographic,  sobre os bons hábitos alimentares, e sobre o respeito que a sociedade nos deve merecer no dia-a-dia, não vale nada em comparação com um bom anúncio, ou uma série televisiva, em  que passam imagens de desregramento, no recurso à comida de plástico, no desperdício, no laxismo nos códigos de conducta e nas atitudes  cívicas, na desinibição sem rédeas no relacionamento humano, como se fosse o modus vivendi mais bem aceite nas sociedades que se querem modernas e avançadas.

No século passado, até ao último quarto, associávamos o cigarro aos heróis e heroínas da tela, sobretudo nos momentos de grandes decisões e de expectativa, mas também depois de um banquete ou até no epílogo de um encontro amoroso, e, como resultado, íamos a correr à tabacaria mais próxima, onde nunca pediam o bilhete de identidade. Agora associamos os novos heróis a pizzas tiradas do frigorífico, a refeições que vêm em embalagens de cartão ou de alumínio, os pés em cima da mesa, a duas dúzias de palavrões por cena e só os vilões, os maus da fita, falam educadamente, tem biblioteca, tocam órgão e comem à mesa com bons talheres e boa faiança, refeições  cuidadosamente confeccionadas  em casa, e acompanhadas de um bom tinto.















sábado, 23 de junho de 2012

Bué, bué, bué de longe…




Desde há uns anos que tenho a impressão que o trabalho de traduzir, em muitas das obras literárias, não tem sido entregue propriamente a uma elite de tradutores, mas a quem vai dando alguma conta do recado, um bocado do género de quem não tem cão caça com gato, e não sei se, cada vez mais, excessivamente condicionados pela cultura anglo-saxónica. 

Felizmente vão aparecendo traduções -nos antípodas da mediania senão mesmo da mediocridade, que a meu ver se estão a instalar nas editoras de maior popularidade- como a de Frederico Lourenço que, após um grande trabalho de pesquisa, tornou mais acessível e ao mesmo tempo mais fiel ao texto, a leitura desses dois grandes livros mágicos e fascinantes a Odisseia e a Ilíada de Homero (1).

Embora não seja da minha área específica de conhecimento mas, como leitor, e freguês das livrarias, com hábitos de leitura desde tenra idade, tenho que dar conta das formas mais grosseiras e evidentes do laxismo e da falta de rigor ou de competências mais adequadas, de quem traduz.

Este texto que se segue é uma compilação de cartas escritas às editoras Bertrand, Quetzal e Gradiva e ao Inimigo Público. O leitmotiv será o dos sistemas de pesos e medidas à volta do qual outras questões e motivos são abordados. 
Houve algumas alterações no conteúdo e na forma mas o essencial mantém-se.

Tive respostas da Quetzal pelo responsável da Comunicação e Imprensa, Bruno Vieira Amaral, que vai contactar a tradutora, e, literalmente, pela caneta do editor da Gradiva, Guilherme Valente, aliás numa carta personalizada, muito humana, cheia de um sentido de humor e de uma mordacidade desarmantes. Da Gradiva viria a receber uma segunda carta da responsável mais directa pela edição em questão, que justificava as opções abaixo descritas pela tentativa de se enquadrarem mais na época antiga em que a história, aliás do género Fantástico e juvenil, se desenvolve. Tranquiliza-me dizendo que é uma grande defensora da nossa cultura.

Da Quetzal li o Leão Africano (2), do escritor Amin Maalouf, libanês de nascimento, mas que vive em França desde 1976, e é em francês que escreve os seus livros. Aliás foi escolhido, recentemente, pela Academia Francesa, para fazer parte dela como seu membro de pleno direito.

Contudo, a tradução portuguesa do Léon L’African, a cargo de Maria da Graça Morais Sarmento, brinda-nos, sempre que há referência a distâncias, com milhas ao invés de quilómetros, unidade de medida do sistema métrico criado em França.

Ora quando um leitor minimamente erudito depara com a tradução de um romance francês que nos dá as distâncias em milhas, só podemos concluir que a tradutora é (mais) entendida no inglês e terá feito a tradução a partir da versão inglesa daquela obra. 

Depois não se lembrou de fazer a conversão para o sistema métrico, que por sinal também é o nosso, ou não esteve para isso, ou teve preguiça de ir às tabelas de conversão.

De qualquer forma muitos leitores devem ter ficado sem a noção das distâncias descritas, só o trabalho de ir às tabelas, e este tipo de tradução não respeita nem a cultura francesa nem a nossa.

No livro de Stephen King, A Maldição, da Bertrand, a páginas tantas dão-nos o peso do personagem principal em libras, mais concretamente cento e setenta e quatro libras. 

Eu pergunto se o tradutor usa, no seu dia-a-dia, no nosso país, esse sistema de pesos. Não o estou a ver a pedir no talho 10 libras de carne, ou no consultório do médico a dizer que emagreceu sete libras. Nem ponho a hipótese de tal coisa lhe ter alguma vez passado pela cabeça.

E duvido que a quase totalidade dos leitores saiba fazer a conversão automática de libras para quilos (portugueses, latinos e universais). O mais provável é que a maioria dos leitores não se preocupe muito e passe à frente. 

Uma tradução completa e rigorosa também deve respeitar os diferentes sistemas de pesos e medidas, “traduzindo”, fazendo a conversão do sistema anglo -saxónico para os nossos sistemas, portugueses e (mais) universais.  
      
Também na Marca das Runas, da Gradiva, com tradução de Isabel Fraga, destaca-se, a meu ver, o uso, sem complacências, da terminologia inglesa de jardas, pés e pés cúbicos e milhas, sem tradução (conversão) para o nosso sistema métrico, nem em rodapé. 

Apesar de toda a influência anglo-americana que nos é veiculada diariamente desde as muitas designações, em que, no quotidiano, se prefere o inglês em detrimento do português, em diferentes áreas de actividades técnicas, cientificas, comerciais, de lazer e desportivas, na orgânica de hotéis e empresas, até ao monopólio de séries de televisão e de filmes, ninguém vai dizer, nem a tradutora certamente, que faltam duas milhas para terminar a viagem ou que aquela sala tem tantos pés (ou que esta caixa tem os pés cúbicos suficientes).


A não ser que haja uma estratégia tácita de quem traduz e dos ministérios governamentais, aqueles que mudaram, no turismo, Algarve para Allgarve, para depois nos habituarmos a poder dizer aos turistas ingleses, perdão, ingleses turistas, as distâncias em milhas. 

De qualquer forma uma coisa são expressões híbridas, mas com mais ou menos o mesmo significado, no português corrente, do que se pretende dizer, outra coisa será esta, a meu ver, “falsa” tradução em que os termos não têm uma correspondência directa, prática, automática, no que respeita ao português falado, no nosso quotidiano.

Provavelmente foi só comodismo em converter milhas em quilómetros, ou será que traduzir do inglês para o português não inclui a conversão dos respectivos sistemas de medição?
Se há vontade da tradutora em nos ir familiarizando, aos bocadinhos, com a imperial língua, podia pôr, em rodapé ou no fim do (s) livro(s), tabelas de correspondência.          
                                                                   
Por outro lado, no acto de traduzir, tenho a percepção no geral e neste livro em particular, que, ainda sob a influência anglo saxónica, gradualmente, o adjectivo passou a ser mais importante que o substantivo, precedendo-o quase sempre, senão sempre, como se estivéssemos a imitar um inglês a falar (o que fazíamos como caricatura). 

Também encontramos outro tipo de transcrição no original, sem tradução, nem em rodapé. No livro A Filha de Hitler, da Bertrand, passado para o português por Patrícia Xavier, encontrei muitas frases e excertos de libretos em alemão, sem a respectiva tradução. 

Dos libretos, das óperas do Wagner, ainda se consegue a tradução em inglês ou francês, para quem tenha boas edições discográficas daquelas óperas. Agora de outras frases, do alemão (e do francês), só se eu me substituir à tradutora, no trabalho de passar para a nossa língua latina, ibérica e lusa, as frases em germânico.
                   
É possível que tenham os leitores em tal alta conta, em que o domínio de línguas estrangeiras, e a conversão mental automática de pés e milhas, para o nosso sistema métrico, seja uma realidade já comum a tais leitores. Tal não acontece comigo e preciso de tabelas, dicionários ou da ajuda de quem sabe alemão, o que não é fácil, o que certamente acontecerá com a imensa maioria dos vossos leitores.

                 Independentemente desta tradução, que, no geral, será rigorosa, parece haver uma aceitação pública a arquétipos de maior laxismo, ignorância e conformismo em relação à arte de traduzir, falta de cultura geral do público, nos meios estudantis donde sairão os novos tradutores e dos novos licenciados.  

Isto torna-se muito mais visível, não poucas vezes de forma bem grosseira, na legendagem de filmes em DVD ou no Cinema, que se chega a duvidar das habilitações de quem traduz.

Ainda sobre a transcrição simples de línguas estrangeiras, no suplemento do Público, o Inimigo Público, pelo menos até 2008, as legendas ou os balões dos desenhos satíricos, da imprensa internacional, não eram traduzidos, inclusive, e se a memória não me falha, do alemão. 

Pode, também aqui considerar-se a alta consideração que o I.P. tem pelos seus leitores, gente instruída o suficiente para não precisar de traduções.    



               
Mas concedam-nos a liberdade de não sermos obrigados a saber tanto de inglês, já nem falo do alemão ou do holandês, como da nossa língua. Senão fica o leitor com a tarefa de traduzir, para quem tiver pachorra para tal, claro.

Não voltei a ver a falta de legendas ou de balões em português, desses desenhos satíricos, e, aliás, nem, tão pouco, os desenhos.

       Contudo a má tradução ou a falta dela revelam-se de forma muito mais evidente e primária nas salas de cinema e na televisão onde os exemplos mais grosseiros pontificam, launched por lanche, caracterizar a agressão com um veneno como…virulenta, etc, etc.

No Cinema, como no filme recente Paranoid Park, de Gus Van Saint, já se viu Introduzir nas legendas, à viva força, termos em calão, predominantemente de origem juvenil e alfacinha, porque as personagens são adolescentes, quando, na língua original, o inglês, apesar de estarem na idade do bué e do fixe, se”esqueceram” de usar o calão. 
O tradutor, pessoa moderna, certamente “fixe”, vê-se na obrigação de corrigir e actualizar um discurso demasiado clássico e correcto para adolescentes dos nossos dias.


No (primeiro) filme Shrek, destaca-se logo no ínicio a exemplar criatividade, a “gracinha” do tradutor(a) ao passar de far, far, far away para os ridículos balidos, bué,bué, bué de longe, anulando o efeito de humor pretendido que seria contrapor ao classicismo e ao encanto daquela expressão tradicional, dos contos de fadas, o que se irá seguir num guião competente que não foi feito propriamente em cima do joelho.

Grosso modo penso não andar muito longe da verdade ao dizer que o retrato-tipo de um tradutor, não só de legendas de filmes e séries mas de muita literatura, será a de um individuo recém- licenciado, ou nem isso, lisboeta, nem sempre rigoroso, e muito preso à gíria alfacinha, de cariz sobretudo juvenil, “tipo bué”, mesmo, pelos vistos, que no original encontremos uma terminologia clássica.

Gostaria só de saber se as encomendas a quem traduz estarão a cargo de quem tem cada vez mais em linha de conta o primado económico ou social (família e amigos) sobre o curriculum, ou seja mão-de obra menos experiente e menos qualificada, talvez mais familiar, mais em conta, ou se realmente o recrutamento é feito entre os de melhor curriculum. 
 
Muito provavelmente receio que a resposta esteja na primeira hipótese, pois não teria lógica nenhuma serem os mais qualificados os actuais responsáveis pelas, quantas vezes, legendas hilariantes (podia-se fazer uma antologia volumosa), e pelas traduções pouco cuidadas na literatura.

Apesar de tudo Deus nos livre dos filmes dobrados, essa praga da qual, felizmente, temos sido poupados. Saber que há espectadores franceses e espanhóis que nunca ouviram a voz de um Vincent Price, de um Humphrey Bogart, de um Mastroianni, de uma Sofia Loren, de uma Julie Andrews, o alemão de uma Marlene Dietrich, o timbre de um russo, o acento tonal dos japoneses em natural sintonia com as suas atitudes e gestos, faz-me ter mais simpatia pelo nosso país.

Numa cena penso que do Decameron de Pasolini, que infelizmente vi dobrado em inglês, há um casal de jovens italianos que discute com grande vivacidade de gestos e expressões faciais, em grande contraste com a fleuma, a lentidão, a contenção o registo baixo e monocórdico do diálogo entre o casal que os dobra.





Nunca conheceremos verdadeiramente um actor se não lhe conhecermos a voz, não desfrutaremos completamente da cultura de um país ou de uma região se nunca ouvirmos as sonoridades da língua local.

(1)Livros Cotovia

(2)Já agora como leão em francês é lion e não Léon, que é um nome próprio, de pessoa, claro, só se pode tratar mesmo de uma tradução livre, para ter um título mais sonante em português, ou então foi distracção e falta de rigor. O título correcto em português seria Léon o Africano.



domingo, 17 de junho de 2012

A Cozinha Regional de Lamego, onde pára ela.




Há meses vi noticiada, no Jornal do Douro, a criação de uma nova confraria, a Confraria Gastronómica de Lamego. 

Para uma cidade que está longe de ser uma referência no que respeita à oferta, que aliás nem se avista, de pratos originais e tradicionais locais, podemos pensar, com aquela notícia, num acontecimento bem-vindo, que poderá vir a ser um catalizador para o renascimento gastronómico Lamecense. 

Desde que esta confraria seja mais do que um pretexto para feiras e patuscadas cerimoniais.

A Europa meridional e do sul, por influência das civilizações romana, e árabe, é de longe a região, muito à custa da Itália e da França, do mundo ocidental, com maior variedade, riqueza e imaginação, no que respeita à arte da culinária. 

E o concelho de Lamego também deu o seu contributo, ao longo dos séculos, para além das bolas típicas de bacalhau, de carne e de presunto, mas é preciso saber onde as comprar, e dos fumeiros e enchidos menos típicos. 

É verdade, por muito que não pareça, aqui também há pratos regionais.

Assim nós podemos encontrar nos livros de pesquisa gastronómica, não nos restaurantes, uns caldos de perdiz, de nabiças e de papas, uma açorda do Natal, cevadinha, arroz de couve, arroz de polvo, um bacalhau assado nas brasas, um bacalhau assado no forno e um bacalhau com molho de vilão, polvo frito, alheiras com batatas e grelos, cabrito assado no forno, carne em vinha de alhos, coelho assado no tacho, coelho com ervilhas, milhos com entrecosto, rojões (à moda de Lalim), um coelho à moda de Lamego, umas trutas de escabeche, um bolo de amêndoa e um outro de noz, quadrados de amêndoa, aletria (de Lamego), farinha de pau doce, pudim de laranja, grades, bolos amarelos, bolos-podres, pastéis de Lamego, mulatos, filhós (à moda de Lamego), fritos de leite.

E obviamente os vinhos do Douro, nesta cidade que foi o berço do Vinho do Porto, conhecido originalmente como Vinho Cheirante de Lamego. Não esquecendo os belíssimos brancos da zona do Távora-Varosa.

Sendo o Douro a região agrícola mais lucrativa do país e do noroeste da península, e que, desde há anos, tem ainda criado condições de transporte fluvial e de alojamento para usufruto de um número crescente de turistas, e sendo Lamego ponto de passagem obrigatório nas rotas do vinho, a visita só pode ficar social e culturalmente incompleta quando nas ementas dos restaurantes não se vislumbra qualquer convite à descoberta dos sabores seculares da cozinha lamecense.